29 de setembro de 2008

Notas sobre um abandono





"Love is a losing game"(Amy Winehouse)

Não me olhe assim, por favor! Com olhos tão arregalados e assustados. Eu sei bem que você não esperava minha volta. Você já até sorria sem mim, minha ausência se tornou teu bálsamo. Eu sei, eu sei. Quanto dor me corta agora o coração. Não precisa, não precisa pedir desculpas. Não o responsabilizarei pelas lágrimas que derramei, elas sempre pretencem a mim. Independente do que as causou. Existe um rio lá fora, mas uma hora ele seca e tudo se finda numa curva qualquer. Eu vim aqui agora, porque existe uma infinitude de coisas a serem ditas. Então, por favor mais uma vez me escute, apenas. Todas as manhãs eu lembro da última vez que nos vimos, do som do chuveiro, do toc toc do teu sapato insistente e irritante...e do beijo com cheiro de creme de barbear que você estampou no meu rosto lânguido. Não sabia eu que você naquele dia me deixaria, me colocaria de escateio sem nem ao menos um adeus. O dia era como um outro qualquer, tudo na impecável normalidade da rotina vazia. As horas se passaram e um milhão de possibilidades me aturdiram...pensei no que poderia ter impedido teu caminho até a nossa casa. Teria morrido? estaria com outra mulher?quantas interrogações cutucaram minha cabeça. É melhor você nem saber. E eu que pensava que não te amava mais, tive que aceitar a inquestionável assertiva que você tinha se tornado meu oxigênio. Eu te amo, ainda...mas, não diga a ninguém se minhas amigas ouvissem isso me odiariam para sempre. Desde que você foi embora elas dizem todos os dias que devo te repugnar e odiar. E eu numa concordância errônea e mentirosa digo que sim com a cabeça. Mas, só eu sei como dói carregar você aqui. Tuas roupas estão lá no mesmo lugar, o chapéu de Panamá e aquele casaco que você não desgrudava. Deixei tudo lá na esperança que uma hora você batesse a minha porta a procura deles. É, eu me rendi as possibilidades mais ridículas e acredite elas me pareciam completamente agradáveis no meu desespero. Fazia muito tempo que eu não saía a rua, por medo do que as pessoas perguntariam. Os vizinhos sempre investigando as vidas que não pertencem a eles. Eu não estava pronta para assumir meu papel de mulher abandonada. Eu sei que você já se cansou da minha mania de tagarelar sem parar. Teus olhos estão sempre enfadonhos quando me miram. É difícil dizer isso, mas quando olho para você os meus sempre marejam, desejam chorar. Sei que o tempo apagou o que nos uniu e a rotina sufocou as surpresas que existiam em nos conhecermos bocado a bocado. Mas, eu não sabia que isso te levaria para longe das minhas posses. Eu te quis tanto e te dei tanto tempo da minha vida.Dei a ti meu viço, minha juventude descabida de tanta beleza. E de repente, você simplesmente se cansa de mim...tudo bem, é a lei do livre-arbítrio e você fez uso do que cabia a você. Nunca tivemos filhos porque você sempre defendeu que filhos servem apenas para nos cansar de tudo mais rápido.
E nada mais vai ficar escrito sobre nós, não há descendentes...só cartas amareladas e fotos de uma realidade que se despedaçou aos nossos pés. Rachou como vidro!
E ainda tem tanto a ser dito, eu sempre tenho essa sensação. Que eu preciso roubar as palavras que cismam em pairar sobre minha cabeça e traduzi-las para você...quanta ingenuidade! Ninguém precisa ser sempre tão verdadeiro e impecável com as palavras. Elas são traiçoeiras e armam um laço no pescoço de quem se utiliza ilimitadamente delas.
Agora, beija meu rosto! Não precisa dizer nada. Já existem verdades demais pra eu enfiar goela abaixo. Não precisa dizer que a solidão te agrada mais do que eu...apenas reduza tudo a um beijo seco no rosto. Tuas malas estão lá embaixo. Agora eu preciso ir tem muito que precisar ser reconstruído e pedaços que preciso catar. Amo-te e isso não é tudo.

Ananda Sampaio***

2 comentários:

EboRâguebi disse...

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Luciana Lís disse...

Olha, há muito de mim aí nessa crônica...
Muito mesmo.
Você, sem saber, me leu.

Muito bom!