Tudo que recai sobre mim. Esse
poderia ser o título. Pensou a mulher – só queria ser escritora. Era assim, todos
os dias enquanto cumpria tarefas burocráticas: fichas, tabelas e procedimentos.
Gastava as letras, as palavras e a própria vida levantando pesos, avaliando
medidas até o fim do dia. E assim parecia viver na roda eterna, sempre a
espera.
Uma espera que não sucede e nem
alivia. Só queria ser escritora – pensava mais uma vez, enquanto sentia o
cheiro de mofo da sala entulhada de papéis. Vivia entre papéis, no entanto eram
frios, careciam de vida, de vento que os carregasse, de olhos que se enchessem
de ondas.
Desperdiçava a flexibilidade dos
dedos e articulações. Não falava sobre a dança das nuvens nem descrevia
minunciosamente a sensação de formigamento que atacava a mão que colocava sob a
cabeça. Essas coisas eram as que realmente importavam. Não queria saber sobre o
PIB ou a balança comercial muito menos sobre as relações hipócritas e venenosas
confabuladas pelos homens “de poder”. No entanto ela sabia, tinha que saber. O
mundo prático batia a porta dia após dia. E ela respondia:
- Eu só quero ser escritora.
Trançar meus dias em novelos de
sentimentos, mesmo que não fossem límpidos ou decentes (eles nunca são). Será
que escrever é ser devassado pelas perguntas? Helena dançava com elas, num
retumbante encontro de pessoas que jamais irão se tocar, de pessoas que se
colocarão em eterna dúvida, contudo sem medo.
- Só tenho medo de não escrever
nada. Murmurava ao acordar ainda caminhando sobre as linhas do papel pautado
dos sonhos trafegados. Rodovias insanas, período latente. De olheiras e da
janela parece observar o mundo.
-O olho da minha alma está
refletido majoritariamente naquilo que jamais verei – apenas entrevejo e
saliento: a vida não está aqui.
É necessário retirar os pés do
chão. E o mundo ainda é um absurdo e tudo é vago. Como um retrato de ninguém.
Como o instante congelado, habitado por vazios. Tudo é de aço, até os homens.
-Até mesmo eu, mulher, flor de aço. Que triste!
- No entanto, me pergunto escrever
o quê? Para quem? Talvez eu só queira escrever cartas, desmembrar alguma coisa.
Dizer para alguém que não concordo com tudo isso. Que me dói ter olhos para ver
e lábios que não fazem nada, colados se calam. Pode ser que eu jamais possa ser
alguém que escreve, apenas cartas. Procurar o endereço do amigo que está longe
e dizer que lamento a fragmentação da amizade, que lamento os desentendimentos
silenciosos. E que não concordo! Tenho que dizer isso. Lá defenderei apenas as
explosões do coração, na carta que escreverei direi que meu peito é um jardim e
que tudo fora dele é doentio. Direi que sobrevivo do sonho enlutado de escrever. Direi
que não sou mais a mesma e que lamento ter mudado tanto sem que lhe dissesse
passo a passo. Direi que viver é foda e que tudo que eu quero está fora daqui. E
que esse negócio de monetizar tudo me mata. Que das mortes que experimento não
escrever é a pior. E que eu preciso escrever, mesmo que seja pra dizer que
saudade quando cozida demais vira sonho. Eu sei, meu amigo. Preciso escrever.
Perdão.