18 de novembro de 2015

O que recai sobre mim


Tudo que recai sobre mim. Esse poderia ser o título. Pensou a mulher – só queria ser escritora. Era assim, todos os dias enquanto cumpria tarefas burocráticas: fichas, tabelas e procedimentos. Gastava as letras, as palavras e a própria vida levantando pesos, avaliando medidas até o fim do dia. E assim parecia viver na roda eterna, sempre a espera.

Uma espera que não sucede e nem alivia. Só queria ser escritora – pensava mais uma vez, enquanto sentia o cheiro de mofo da sala entulhada de papéis. Vivia entre papéis, no entanto eram frios, careciam de vida, de vento que os carregasse, de olhos que se enchessem de ondas.

Desperdiçava a flexibilidade dos dedos e articulações. Não falava sobre a dança das nuvens nem descrevia minunciosamente a sensação de formigamento que atacava a mão que colocava sob a cabeça. Essas coisas eram as que realmente importavam. Não queria saber sobre o PIB ou a balança comercial muito menos sobre as relações hipócritas e venenosas confabuladas pelos homens “de poder”. No entanto ela sabia, tinha que saber. O mundo prático batia a porta dia após dia. E ela respondia:

- Eu só quero ser escritora.

Trançar meus dias em novelos de sentimentos, mesmo que não fossem límpidos ou decentes (eles nunca são). Será que escrever é ser devassado pelas perguntas? Helena dançava com elas, num retumbante encontro de pessoas que jamais irão se tocar, de pessoas que se colocarão em eterna dúvida, contudo sem medo.

- Só tenho medo de não escrever nada. Murmurava ao acordar ainda caminhando sobre as linhas do papel pautado dos sonhos trafegados. Rodovias insanas, período latente. De olheiras e da janela parece observar o mundo.

-O olho da minha alma está refletido majoritariamente naquilo que jamais verei – apenas entrevejo e saliento: a vida não está aqui.

É necessário retirar os pés do chão. E o mundo ainda é um absurdo e tudo é vago. Como um retrato de ninguém. Como o instante congelado, habitado por vazios. Tudo é de aço, até os homens.

-Até mesmo eu, mulher, flor de aço. Que triste!

- No entanto, me pergunto escrever o quê? Para quem? Talvez eu só queira escrever cartas, desmembrar alguma coisa. Dizer para alguém que não concordo com tudo isso. Que me dói ter olhos para ver e lábios que não fazem nada, colados se calam. Pode ser que eu jamais possa ser alguém que escreve, apenas cartas. Procurar o endereço do amigo que está longe e dizer que lamento a fragmentação da amizade, que lamento os desentendimentos silenciosos. E que não concordo! Tenho que dizer isso. Lá defenderei apenas as explosões do coração, na carta que escreverei direi que meu peito é um jardim e que tudo fora dele é doentio. Direi que sobrevivo do sonho enlutado de escrever. Direi que não sou mais a mesma e que lamento ter mudado tanto sem que lhe dissesse passo a passo. Direi que viver é foda e que tudo que eu quero está fora daqui. E que esse negócio de monetizar tudo me mata. Que das mortes que experimento não escrever é a pior. E que eu preciso escrever, mesmo que seja pra dizer que saudade quando cozida demais vira sonho. Eu sei, meu amigo. Preciso escrever. Perdão.

Ananda Sampaio



3 de novembro de 2015

Desacordo




Descobri muitas coisas, mas a maioria delas eu não posso contar. É como se montanhas tivessem desabado e fosse possível presenciar a chuva voltar para o céu. A cada descoberta um grão do mar que sou, muda de lugar. Posições se invertem. É muito para quem não sabe de quase nada como eu.

Quero dizer, não quero calar. Mas as palavras escorrem dos meus dedos como água, evaporam e partem para dentro de mim. E lá eu já não posso mais alcançá-las. Visto o meu jeans surrado, mais velho e feio porque é mais fácil. Não consigo me deter tanto em escolhas desimportantes.

E quando tento colocar a palavra sou só silêncio retumbante. Ondas abstratas invadem e compactam tudo; abro a caixa que guardei todas as coisas e ao levantar a tampa percebo que lá não há nada. Como um caminho que se desfez junto ao caminhar, como o retrato antigo no qual não me reconheço mais. Estaca zero.

Começo mais uma vez. Cato um pouco daqui, junto com o que me entregam ali e não sabendo catalogar empurro para dentro do armário. Guardado, trancado está. Mas desaparece e todo o refazer deve ser iniciado.

Assim são as mudanças, assim são as revoadas dos pássaros que tendem a ir e vir. Até o dia que não retornarão mais. E se desfarão junto comigo num pôr-do-sol aviltante e descabido. Eu sou o pôr-do-sol no meio da manhã. Essa coisa toda descompassada, fora de hora e latente. E isso ninguém vê [melhor pra mim]. Na verdade eu deveria ter sido bailarina, lamento muito.


Ananda Sampaio