7 de agosto de 2013

O que há entre a parede e o batom


Tenho medo indulgente de quem não tem dúvidas e mais ainda de quem vive com eles sem angustiar-se. As dúvidas sobre a vida, o amor, o destino, Deus e até sobre si mesmo. Elas estão em todo lugar, em praticamente toda pergunta. Como esquivar-se?

Outro dia uma lembrança quase remota apontou diante dos meus olhos enquanto ensaiava o sono, aqueles momentos que a mente parece flutuar e seguir fluxo com toda autonomia, standby ou piloto automático. Talvez expressões alternativas assim, sejam bem mais alusivas do as tradicionais e já ressequidas.

Mas, seguindo, a memória me veio como um presente que eu não pedi. Batom, sobre a parede. Era uma carta de amor, escrita por alguém que acabava de anunciar sua partida. E nada mais poético, que uma carta de um amor findo escrito com batom ruge sobre a parede do antigo lar.

Não lembro as palavras. Sei que eram ásperas, ácidas e ressentidas com cheiro de uva. O batom era de uva, uvas ressecadas – quase vinagre. A expressão da minha avó, ali parada, lendo com olhar turvo e confuso. Como se aquela mensagem tão clara e tão íntima, não pudesse estar ali, sobre uma parede e escrita para qualquer um.

A parede era do quarto do casal. E toda a situação era tão cheia de simbologias, que à época eu com 7 ou 8 anos, sabia que estavam ali, mas aquele código intrínseco ainda não poderia ser decifrado por mim. Virgem de amor, e, principalmente virgem do ódio depois do amor. Era triste, isso eu sabia. Dava pra ver na luz estúpida daquela tarde, que entrava inconvenientemente no quarto sombrio. Que falta de respeito.

Não houve gritos, acusações orais. Apenas ali, na parede, como um culto ao amor acabado. Um monumento às dores causadas pelo outro ou quem sabe por si mesmo. Alguns falavam sobre ciúme doentio, outros sobre instabilidade emocional. Foram vários os conceitos dados àquela obra. Foram várias as tentativas de compreensão daquele fenômeno.

Eu tive dúvidas, muitas. E aquele episódio se apagou da minha mente, como uma folha seca pisoteada até virar pó.  Anos depois, quando deixei de ser virgem de amor, quando não sou mais tão aventureira neste terreno capcioso, a lembrança voltou. Cheia de simbologias e eu finalmente entendi.
Assim como o amor, há também uma necessidade extrema da declaração do ódio. Especialmente aquele ódio depois do amor.

Ananda Sampaio***


Um comentário:

Anônimo disse...

Texto muito bom, companheira... Avassalador! Um dia a gente acaba entendo essas simbologias...Lu