Tenho medo indulgente de quem não
tem dúvidas e mais ainda de quem vive com eles sem angustiar-se. As dúvidas
sobre a vida, o amor, o destino, Deus e até sobre si mesmo. Elas estão em todo
lugar, em praticamente toda pergunta. Como esquivar-se?
Outro dia uma lembrança quase
remota apontou diante dos meus olhos enquanto ensaiava o sono, aqueles momentos
que a mente parece flutuar e seguir fluxo com toda autonomia, standby ou piloto
automático. Talvez expressões alternativas assim, sejam bem mais alusivas do as
tradicionais e já ressequidas.
Mas, seguindo, a memória me veio
como um presente que eu não pedi. Batom, sobre a parede. Era uma carta de amor,
escrita por alguém que acabava de anunciar sua partida. E nada mais poético,
que uma carta de um amor findo escrito com batom ruge sobre a parede do antigo
lar.
Não lembro as palavras. Sei que
eram ásperas, ácidas e ressentidas com cheiro de uva. O batom era de uva, uvas
ressecadas – quase vinagre. A expressão da minha avó, ali parada, lendo com
olhar turvo e confuso. Como se aquela mensagem tão clara e tão íntima, não
pudesse estar ali, sobre uma parede e escrita para qualquer um.
A parede era do quarto do casal.
E toda a situação era tão cheia de simbologias, que à época eu com 7 ou 8 anos,
sabia que estavam ali, mas aquele código intrínseco ainda não poderia ser
decifrado por mim. Virgem de amor, e, principalmente virgem do ódio depois do
amor. Era triste, isso eu sabia. Dava pra ver na luz estúpida daquela tarde,
que entrava inconvenientemente no quarto sombrio. Que falta de respeito.
Não houve gritos, acusações
orais. Apenas ali, na parede, como um culto ao amor acabado. Um monumento às
dores causadas pelo outro ou quem sabe por si mesmo. Alguns falavam sobre ciúme
doentio, outros sobre instabilidade emocional. Foram vários os conceitos dados àquela
obra. Foram várias as tentativas de compreensão daquele fenômeno.
Eu tive dúvidas, muitas. E aquele
episódio se apagou da minha mente, como uma folha seca pisoteada até virar
pó. Anos depois, quando deixei de ser
virgem de amor, quando não sou mais tão aventureira neste terreno capcioso, a
lembrança voltou. Cheia de simbologias e eu finalmente entendi.
Assim como o amor, há também uma necessidade
extrema da declaração do ódio. Especialmente aquele ódio depois do amor.
Ananda Sampaio***
Um comentário:
Texto muito bom, companheira... Avassalador! Um dia a gente acaba entendo essas simbologias...Lu
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