23 de janeiro de 2015

Véu do Tempo


Eu tinha doze anos e morava na casa da minha avó. E aquele hábito dela sempre causou em mim um questionamento. Às vezes, pelo menos uma vez por semana, altas horas da noite ela pegava o pano, o espanador e começava a tirar o pó dos móveis – levantando cada objeto por vez. Àquela época, altas horas pra mim era qualquer hora depois das dez da noite.

Na realidade, a lembrança que escorre em minha mente agora diz que meu coração detectava naquele hábito alguma satisfação, mesmo que para mim constasse como uma entediante tarefa [Por que alguém faria aquilo por prazer?]. Talvez tirando objeto por objeto, passando o pano sobre a madeira lisa e vendo brilhar ela esquecesse os infortúnios da vida. Ser avó é carregar muitos futuros – sem dúvida, às vezes ela se sentia cansada.

Hoje, eu com quase trinta anos de idade, ao sentar na poltrona ao lado da estante de livros de minha casa percebi que aquela pele grossa de poeira que se espalhava sobre as prateleiras me incomodava.

A poeira é o véu do tempo – pensei.

Quando ela tirava o pó estaria também tirando da própria vida todas as camadas que vão se agregando, incrustando na gente? Penso que minha avó queria trazer à vida o brilho puro e original dos objetos, dos móveis, do lar. Como se tudo pudesse permanecer lustroso, novo e belo. Compartilho desta angústia agora porque sei o quanto me afeta perceber que as páginas dos meus livros irão a algum momento oxidar-se.

Nunca perguntei por que ela fazia; nem sempre é bom palavrear as coisas, os atos e as pessoas como faço neste momento. Sei que ela estava resistindo, preservando os objetos na tentativa de preservar a si mesma ou aos próprios sentimentos. Resistindo ao esquecimento. Com a chegada da idade tudo que temos são nossas memórias – nossas lembranças: sabores e dissabores da vida. Ferida aberta que não queremos fechar.

Naquele tempo aquele foi o lar que me acolheu e talvez no meu desespero, no meu ato infantil e cansado de querer dar crédito à vida, fantasiei. Pode ser que por este motivo, eu nunca tenha feito a ela a pergunta, e nem farei. Prefiro pensar que a jovem senhora acariciava as coisas como se fossem memórias – como se pudesse salvar a vida. Como se pudesse transfigurar neles o sentido de existir. Por um momento objetos empoeirados não seriam apenas a matéria bruta e apoética, mas talvez recipientes de nós mesmos. Quiçá guardariam o choro do primogênito, ou um dente de leite dos netos – ou os anos de juventude dela no Liceu.


Imaginar isso, para mim, era ter certeza que a vida é alguma coisa que não sei dizer o quê. Alguma verdade que não dá para qualificar com clichés, alguma beleza para a qual adjetivos não suportam. Portanto, prefiro dizer então que a vida é minha avó tirando poeira dos móveis. Apenas.

Ananda Sampaio***

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