15 de julho de 2015

História da saudade





Ele morreu hoje. Ao contrário do que se pode pensar, ele não terá velório ou missa de sétimo dia. No entanto, se existe céu, sem dúvida, terá lugar pra ele, afinal o rapaz não tinha pecado. Sua alma era cristalina, pode crer. Isso, até mesmo você, poderia perceber.

Pela manhã cedo o mundo se deu conta da sua morte, ou pelo menos, o pequeno mundo que era consciente da existência dele. Porque para todo o resto ele não tinha muita importância. Apenas algumas poucas pessoas choraram sua passagem, apenas algumas poucas pessoas conheceram a sua história. Mas, todas essas poucas pessoas o amavam e isso sim era realmente importante. Sequer preciso pedir a você que o coloque em suas orações – porque ele não precisa disso. Ele está além.

Quando chegou lá em casa já era adulto e valente, quase tão feroz quanto é possível ser. Mas, aos poucos descobrimos que toda aquela ferocidade era apenas resultado de anos trancado, de anos sem muito afeto. Aos poucos vimos ressurgir alguém extremamente carente e meloso. Por vezes, tenho convicção que ele pensava ser um gato. Esfregava o rosto nas nossas pernas, e onde mais pudesse... Queria contato, sempre precisou de contato. E havia uma praça, bambus, banquinhos, quadra e coreto onde ele adorava correr, cheirar e deitar. Apenas ver o mundo, sentir o vento e sonhar com um descampado onde existisse um pouco mais da tão sonhada liberdade. Sem dúvida, era a pracinha o seu lugar preferido.

Ele foi encontrado já morto naquela posição – aquela em que ele tanto dormia e que ele tanto gostava. E de todas as inúmeras e incontáveis formas de morrer que existem ele morreu dormindo, sereno. Imagino que em algum momento na madrugada os órgãos foram se desligando um a um – até que tudo parasse. Sem dor, sem medo. Somente a certeza idiota da esperança. Porque até ele sabia que diante da morte a esperança é o artefato mais inútil que existe.

Provavelmente, o corpo será enterrado no meu quintal, num dia de quarta-feira, no mês de julho. E quem sabe um dia, quando o futuro chegar e quiserem investigar a civilização à qual pertencemos o corpo dele estará lá. Na sua posição favorita e a todos parecerá que ele ainda vive. Apenas decidiu-se por um sono eterno.

Todas as feridas que eram continuamente abertas pela doença que tinha agora finalmente, terão de curar-se. Sem medicamentos, dores ou qualquer outro artifício criado pelos humanos para prolongar a vida. Porque a vida que ele vive agora se alimenta de outras fontes.

Quatro patinhas, duas orelhinhas pretas e longas. Corpo branco e pintinhas pretas, assim eu poderia descrevê-lo fisicamente. E junto a isso acrescentaria o caminhado meio bambo e os seus pequenos olhos castanhos. A partir de hoje isso é o que saberão dele. O resto, me desculpe, está comigo e irei carregá-lo no meu coração para todo o sempre.

Ananda Sampaio

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