Ele morreu hoje. Ao contrário do
que se pode pensar, ele não terá velório ou missa de sétimo dia. No entanto, se
existe céu, sem dúvida, terá lugar pra ele, afinal o rapaz não tinha pecado. Sua
alma era cristalina, pode crer. Isso, até mesmo você, poderia perceber.
Pela manhã cedo o mundo se deu
conta da sua morte, ou pelo menos, o pequeno mundo que era consciente da
existência dele. Porque para todo o resto ele não tinha muita importância. Apenas
algumas poucas pessoas choraram sua passagem, apenas algumas poucas pessoas conheceram
a sua história. Mas, todas essas poucas pessoas o amavam e isso sim era
realmente importante. Sequer preciso pedir a você que o coloque em suas orações
– porque ele não precisa disso. Ele está além.
Quando chegou lá em casa já era
adulto e valente, quase tão feroz quanto é possível ser. Mas, aos poucos
descobrimos que toda aquela ferocidade era apenas resultado de anos trancado,
de anos sem muito afeto. Aos poucos vimos ressurgir alguém extremamente carente
e meloso. Por vezes, tenho convicção que ele pensava ser um gato. Esfregava o
rosto nas nossas pernas, e onde mais pudesse... Queria contato, sempre precisou
de contato. E havia uma praça, bambus, banquinhos, quadra e coreto onde ele
adorava correr, cheirar e deitar. Apenas ver o mundo, sentir o vento e sonhar
com um descampado onde existisse um pouco mais da tão sonhada liberdade. Sem
dúvida, era a pracinha o seu lugar preferido.
Ele foi encontrado já morto
naquela posição – aquela em que ele tanto dormia e que ele tanto gostava. E de
todas as inúmeras e incontáveis formas de morrer que existem ele morreu
dormindo, sereno. Imagino que em algum momento na madrugada os órgãos foram se
desligando um a um – até que tudo parasse. Sem dor, sem medo. Somente a certeza
idiota da esperança. Porque até ele sabia que diante da morte a esperança é o
artefato mais inútil que existe.
Provavelmente, o corpo será
enterrado no meu quintal, num dia de quarta-feira, no mês de julho. E quem sabe
um dia, quando o futuro chegar e quiserem investigar a civilização à qual
pertencemos o corpo dele estará lá. Na sua posição favorita e a todos parecerá
que ele ainda vive. Apenas decidiu-se por um sono eterno.
Todas as feridas que eram
continuamente abertas pela doença que tinha agora finalmente, terão de curar-se.
Sem medicamentos, dores ou qualquer outro artifício criado pelos humanos para
prolongar a vida. Porque a vida que ele vive agora se alimenta de outras
fontes.
Quatro patinhas, duas orelhinhas
pretas e longas. Corpo branco e pintinhas pretas, assim eu poderia descrevê-lo
fisicamente. E junto a isso acrescentaria o caminhado meio bambo e os seus
pequenos olhos castanhos. A partir de hoje isso é o que saberão dele. O resto,
me desculpe, está comigo e irei carregá-lo no meu coração para todo o sempre.
Ananda Sampaio
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