23 de maio de 2008






Conto de verão Número 2: Bandeira Branca


De Luís Fernando Veríssimo


Ele : tirolês. Ela: odalisca. Eram de culturas muito diferentes ,não podia dar certo. Mas, tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem ,de um jeito ou de outro. Em vez de dançara, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa ,sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de carnaval.


Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele, com o mesmo tirolês agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob a ameaça de levarem uns tapas.Passaram o tempo todo de mãos dadas. Só no terceiro carnaval se falaram.


-Como é teu nome?


-Janice e o teu?


-Píndaro.


-O quê?!


-Píndaro.


-Que nome!


Ele de legionário romano, ela de índia americana.


Só no sétimo baile (pirata/chinesa) desvendaram o mistério de só se encontrarem no carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no carnaval, a tia é que era sócia.


-Ah.


Foi no ano que ele preferiu ficar com a sua turma, tentando encher a boca das mininas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado ba gola alta do vestido de imperadora. Mas, quase no fim do baile, a hora do bandeira branca, ele veio a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face disse: -até o carnaval que vem- e saiu correndo.


No baile do ano, em que fizeram treze anos, pela primeira vez a fantasia dos dois combinaram. Toureiro e Bailarina espanhola.Formavam um casal! beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando.Até na boca. Na hora da despedida ele pediu:


-Me dá alguma coisa.


-O quê?


-Qualquer coisa.


-O leque. O leque da bailarina.


Ela diria para a mãe que o teria perdido no salão.


No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado.Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, ás vezes tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile.E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lencol, que estava sendo lavado. O que acontecera?


-Você vomitou a alma- disse a mãe.


Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e a nunca teria de volta.Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.


Mas, no ano seguinte. Ele foi ao baile dos adultos no clube- e lá estava ela.Quinze anos.Uma moça.Peitos,tudo.Uma fantasia indefinida.


- Sei lá. Bávara tropical- disse ela, rindo.


Estava diferente, não era só o corpo.Menos tímida, o riso mais alto.Contou que faltara no ano anterior, porque a avó morrera, logo no carnaval.


-E aquela bailarinha espanhola?- Nem me fale. E o toureiro?- Aposentado.


A fantasia dele, era nada. Camisa florida. bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo.Primos, amigos de primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela apresentou-o ao grupo alguém disse: -Píndaro!?- e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deum uma desculpa e se afastou. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão, anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob a calça de fantasia de sultão. O marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado na alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo carnaval. Não devo chegar aos 30 , pelo menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, e até criminoso que reduzira sua fantasia a um pas de calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi - pelo menos o meu tirolês era autêntico- e desistiu.Mas, quando a banda começou a tocar bandeira branca, e ele se dirigiu para a saída , tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo: - não vale. Você cresceu mais do que eu. Encostando a cabeça no seu ombro.


Encontraram-se de novo 15 anos depois.Álias neste carnaval, por acaso num aeroporto.Ela desembarcando ,a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando , para encontrar os filhos no Rio. Ela disse: - quase não reconheci você sem fantasias. Ele custou a reconhecê-la, estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele lhe dissera foi -preciso te dizer uma coisa. E ela dissera - no caranaval que vem, no carnaval que vem. E no carnaval seguinte , ela não aparecera, ela nunca mais aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado. -Sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha endereço dele, como nem sabia o sobrenome dele e, mesmo não teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara.


- O que você ia me dizer no outro carnaval?- perguntou ela.


-Esqueci.- mentiu ele.


Trocaram informações. Os dois se casaram, mas ele jás e separou. os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil. E a todas essas ele pensando: -Digo ou não digo, que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida, será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: -Como é mesmo o nome dele?Péricles, será Péricles? Ele, digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco, Pôncio, Ptolomeu.


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