rua era simples e comum – como qualquer rua de uma cidade do interior nordestino. A única particularidade era o morro, um pequeno morro, que surgia numa rua até então, plana. Na minha lembrança infantil o tal morro é bem maior do que realmente é hoje, quando o enxergo com esses olhos já mais habituados com as coisas grandes do mundo.
Sobre este morro de proporções
tão difíceis de descrever havia uma casa. Uma casa comum – com um terraço,
portas e janelas compridas e largas. Era uma casa de mãe, na qual todos os
espaços eram grandes demais e pretensiosos a ponto de acreditar que um dia
haveria gente suficiente para enchê-los.
A minha casa ficava na outra
esquina, eu tinha sete anos e fazia a primeira série. Tínhamos nos mudado pra
lá por conta do trabalho do meu pai. Com pouco tempo de convivência descobri
naquela casa um mundo de coisas tão vastas que não sei dizer até onde elas até
hoje me atingem.
Na primeira sala, que ficava à
esquerda, e que era muito pouco utilizada, tinha um quadro. Uma mulher muito
bonita, um busto, com um ramo numa das mãos e no colo um prato com um par de
olhos que me espiava.
Um dia como quem nada quer perguntei
a senhora que era a matriarca daquela família e dona daquela casa tão bonita.
Ela me disse:
- Minha filha, ali é Santa Luzia.
Protetora dos olhos e dos cegos.
Aquela senhora de cabelos de
pluma: brancos e macios habitava um dos lugares mais iluminados do meu coração
já naqueles tempos. Nas nossas tarde ou manhãs de conversas enquanto eu
penteava seus cabelos ela desenrolava para mim os fios da sua vida. Numa voz
terna e simples – ela me levava a sério e relatava para mim as verdades que
tinha presenciado.
Inclusive a experiência de quem
fica cego – de quem aos poucos vê desaparecer as luzes da retina. Ela dizia que
quando eu ficava contra a luz podia enxergar o meu vulto, o meu contorno. Desde aquele tempo eu sabia que
aquela casa tão cheia de quartos, com um corredor tão comprido e azulejos tão
enfeitados era uma espécie de bom lugar. Mas não tinha tanta certeza como tenho
agora.
A senhorinha faz tempo que
faleceu. E embora faça tempo que eu a vi pela última vez eu ainda a carrego
comigo. A textura do seu cabelo ralo e branco, o formato pequenino do seu rosto
ou as mãos de dedos nodosos. Não acredito que relógio algum possa marcar tudo
isso. As voltas que dão os ponteiros jamais expressaram as rodas da vida, ou a
interferência da vida em nós. O relógio marca a hora, que embora pareçam sempre
as mesmas, nunca são iguais. É preciso determinar também o lugar.
E me perco nesses dois caracteres
da física: o tempo e o espaço. Só pra ficar mais perto de todas as pessoas e
sentimentos que o relógio é incapaz de contar e é capaz de separar. Mas não para
sempre, eu não permito.
Ananda Sampaio
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