Através do vidro da vitrine
assisto pessoas passarem. Alguns olham para o chão sem medo de atrito, outros
caminham com o olhar nas alturas – parecem procurar algo no céu. Fones de
ouvido, o que será que toca? Chinelos, tênis, sapatos, sandálias. Compenetrados
nas suas tarefas de trabalho que ficaram incompletas? Ou será que, assim como
eu, acordam já pensando em retornar as suas casas?
Nesse redemoinho de pessoas que
desenham a cidade, divergem e convergem eu me vejo: um ponto, um grão, uma
vírgula inconveniente no lugar errado, separando sujeito e predicado.
Preocupada que em um momento oportuno seja substituída por um ponto e na mais
otimista das hipóteses, quem sabe, substituída por um ponto e vírgula (;).
Esse negócio de coração e mundo
não dá certo. A gente carrega pra todo lugar essa coisa pulsante e frágil.
Deveríamos deixá-la em casa, descansando, guardada no cofre. Que risco andar
com o coração por aí. Nesse lugar tão grande, planeta lotado de catástrofes um
coração partido ainda é uma desgraça.
Morrem milhares na Síria e
algumas dessas pessoas que passam levam agora na mente o medo do coração
magoado. Umas superam, outras metem bala na cabeça, na boca, no peito e até
acertam ele, o coração. Corajosos esses, matam tudo. Até a esperança.
Mas existem aqueles que suportam,
se blindam, se resguardam e vestem a roupa limpa para cumprir mais um dia de
trabalho. Para esses ainda resta alguma coisa, talvez uma vontade de tomar um
sorvete, de sentar no balanço enquanto a sua música favorita toca ou ainda
escrever uma carta abrindo o peito para o outro com coragem. Porque coração
também pode ser aberto com medo.
Não sei qual dessas pessoas é
mais corajosa.
Há ainda o coração que não é seu,
outros carregam, mas que a nós preocupa ainda mais. Os corações de quem amamos.
Eles estão por aí, a solta. Sujeitos às mais intrépidas barbaridades. Meu Deus!
Que risco corremos todos. O coração de
minha irmã, meu pai e mãezinha. O coração do meu amor. Todos expostos às
intempéries. E como não posso sofrer? Sofro por eles, rio com eles.
Vulnerabilidade. Estamos
vulneráveis – desabitados e habitados por tantos ao mesmo tempo. Numa solidão
contrastante e desviante. Mãos dadas são mãos vazias – mas crentes de si. Da
força dos dedos, do nó e do entrelaçamento. Nossos corações são também dedos,
pontas de dedos, são olhos e também são laços. Atados.
Porém, soltos. Guarda teu
coração, por mim – pode ser que eu diga. Não, não guardo – tu dizes. Pra vida é
preciso peito, é preciso coração.
Embora sangre, ele é meu barco.
Ananda Sampaio
Um comentário:
"Pra vida é preciso peito, é preciso coração." Que belo e profundo isso !
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