20 de outubro de 2015

Os corações todos



Através do vidro da vitrine assisto pessoas passarem. Alguns olham para o chão sem medo de atrito, outros caminham com o olhar nas alturas – parecem procurar algo no céu. Fones de ouvido, o que será que toca? Chinelos, tênis, sapatos, sandálias. Compenetrados nas suas tarefas de trabalho que ficaram incompletas? Ou será que, assim como eu, acordam já pensando em retornar as suas casas?

Nesse redemoinho de pessoas que desenham a cidade, divergem e convergem eu me vejo: um ponto, um grão, uma vírgula inconveniente no lugar errado, separando sujeito e predicado. Preocupada que em um momento oportuno seja substituída por um ponto e na mais otimista das hipóteses, quem sabe, substituída por um ponto e vírgula (;).

Esse negócio de coração e mundo não dá certo. A gente carrega pra todo lugar essa coisa pulsante e frágil. Deveríamos deixá-la em casa, descansando, guardada no cofre. Que risco andar com o coração por aí. Nesse lugar tão grande, planeta lotado de catástrofes um coração partido ainda é uma desgraça.

Morrem milhares na Síria e algumas dessas pessoas que passam levam agora na mente o medo do coração magoado. Umas superam, outras metem bala na cabeça, na boca, no peito e até acertam ele, o coração. Corajosos esses, matam tudo. Até a esperança.

Mas existem aqueles que suportam, se blindam, se resguardam e vestem a roupa limpa para cumprir mais um dia de trabalho. Para esses ainda resta alguma coisa, talvez uma vontade de tomar um sorvete, de sentar no balanço enquanto a sua música favorita toca ou ainda escrever uma carta abrindo o peito para o outro com coragem. Porque coração também pode ser aberto com medo. 


Não sei qual dessas pessoas é mais corajosa.

Há ainda o coração que não é seu, outros carregam, mas que a nós preocupa ainda mais. Os corações de quem amamos. Eles estão por aí, a solta. Sujeitos às mais intrépidas barbaridades. Meu Deus! Que risco corremos todos.  O coração de minha irmã, meu pai e mãezinha. O coração do meu amor. Todos expostos às intempéries. E como não posso sofrer? Sofro por eles, rio com eles.

Vulnerabilidade. Estamos vulneráveis – desabitados e habitados por tantos ao mesmo tempo. Numa solidão contrastante e desviante. Mãos dadas são mãos vazias – mas crentes de si. Da força dos dedos, do nó e do entrelaçamento. Nossos corações são também dedos, pontas de dedos, são olhos e também são laços. Atados.

Porém, soltos. Guarda teu coração, por mim – pode ser que eu diga. Não, não guardo – tu dizes. Pra vida é preciso peito, é preciso coração.

Embora sangre, ele é meu barco.

Ananda Sampaio



Um comentário:

Unknown disse...

"Pra vida é preciso peito, é preciso coração." Que belo e profundo isso !